segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Pintar o Sol

No princípio, quando cada momento era um milagre e o tempo não se media por horas e minutos, mas pela expectativa de um beijo que se pressentia como se pressente o sabor do chocolate quente pelo cheiro que emana, desenhavamos a vida como a víamos. Uma folha em branco depressa se enchia, pela magia de uns paus coloridos, com as coisas que amávamos. As casas tinham janelas como sorrisos e as pessoas andavam sempre de braços abertos para abraçar os amigos; ás vezes o cão era maior que o pai, mas o sol brilhava sempre, no canto superior direito do mundo!...
Era um mundo de rios que corriam entre florestas tendo como único objectivo arredondar seixos, de chuvas revitalizantes que depositavam beijos em pétalas, de ondas que rebentavam pelo simples prazer de rebentar, dividindo ao fazê-lo a rocha teimosa em finos grãos de areia ao som de uma sinfonia de espuma.
Imitando a natureza, aprendemos as técnicas básicas para construir e destruir, compôr e decompôr. Amassar farinha e água para fazer pão; terra e água para tijolos. Aquecer areia para fazer vidro; minerais para metais. Com respeito e amor... Uma boa galinha poedeira não se mata: chama-se Henriqueta!...
E a Henriqueta faz parte desse mundo que desenhámos, que criámos na folha em branco que nos puseram à frente dos olhos e ao alcance da mão. Lá está ela ainda, ao lado da casa cujas janelas sorriem cada vez menos, com as suas cortinas cada vez mais fechadas para ocultar os braços que se fecham sobre si mesmos. Não tarda muito teremos grades nas janelas...
Grades para nos proteger!... As janelas das nossas casas já não sorriem, mas ameaçam os que passam; avisam-os para se manterem à distância, para que saibam que não são bem-vindos!
Esquecemo-nos de tudo!...
Já não sabemos cozinhar, nem fazer tijolos; já nos esquecemos que os rios correm só para arredondar os seixos ou que a chuva cai para beijar pétalas; que as ondas rebentam apenas para compôr sinfonias de espuma!...
Esquecemo-nos que as coisas mais preciosas são aquelas que se encontram sem procurar. Que não há maior tesouro do que as coisas que não podemos guardar. Se unires as mãos em forma de concha consegues retêr a água do mar; se as fechares para a possuíres, escorre-te por entre os dedos... Só aquilo que oferecemos, de mãos em forma de concha, podemos possuir.
Farid ud-Din Attar descreveu, no século XII, num dos mais belos poemas da literatura persa (Mantiq at-Tayr), a busca de trinta pássaros pelo “Simurgh”, o pássaro sagrado, “Deus”... Depois de atravessarem sete vales cheios de adversidades, os que não morreram ou desistiram pelo caminho, exaustos e depenados, exigem ver o “Simurgh”... Mas “Simurgh” é só “si murgh” (“trinta pássaros”) e são confrontados, não com “Deus” ou o “Simurgh” que esperavam, mas com um espelho que reflecte a sua própria imagem...
Juntos, somos o “Simurgh”. Estamos aqui para polir o espelho e vêr nele o nosso reflexo. Estamos aqui para nos lembrarmos dos desenhos que fizemos, para honrarmos a memória dos nossos sonhos, para voltar a pôr o sol no canto superior direito do mundo!...

Reinaldo dos Santos Batista

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